terça-feira, 3 de outubro de 2017

O direitismo bonapartista contra a democracia

Marcus Ianoni

O grande capital governa, mas, contraditoriamente, não reina em paz, pois o rei (o regime representativo) está nu, exibindo continuadamente em público sua reprochável mácula, novamente exposta na segunda rodada de denúncias da PGR contra o presidente Temer, desta vez abrangendo também dois de seus ministros mais importantes, todos suspeitos de obstrução da justiça e organização criminosa.

Nesse mar de lama, emergem do bloco heterogêneo da direita que induziu à atual deformação regressiva do Estado Democrático de Direito novas manifestações de autoritarismo social, com respaldo dos políticos, e, na esfera institucional, expande-se o bonapartismo, alastrando-se, preocupantemente, do Judiciário e demais instituições de controle até nada mais nada menos que a esfera militar. Os autoritarismos social e bonapartista reforçam-se mutuamente, embora essa dinâmica ainda não tenha um curso decidido. A crise de legitimidade é o centro de gravidade do direitismo.



A deposição de Dilma, feito embalado na onda conservadora-neoliberal, não tem logrado nem recuperar a atividade econômica e nem garantir a estabilidade institucional, dada a desavença entre o Judiciário e os dois outros poderes supremos da República. Apesar de haver governabilidade, graças à aprovação da agenda política e legislativa do Palácio do Planalto sob o guarda-chuva do presidencialismo de coalizão, o sistema político carece de legitimidade. As maiores evidências disso são a rejeição ao presidente Temer, nesse caso praticamente unânime, e aos três principais partidos governistas: PMDB, PSDB e DEM, estes repelidos por nada menos que 75% dos entrevistados, conforme a mais recente sondagem de opinião, encomendada pelo próprio partido do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ).



A perseverança da instabilidade trouxe novamente à cena a direita social. No início de setembro, foi fechada, após protestos do MBL, a exposição do Santander Cultural, em Porto Alegre, dedicada a temas LGBT. Recentemente, ocorreu forte reação contrária a uma performance de nudez artística no MAM-SP. Tais fatos, entre outros (como a questão da “cura gay”) representam um avanço do conservadorismo e da intolerância da direita social e política no plano da cultura e do comportamento. O prefeito João Dória (PSDB-SP), por exemplo, acaba de publicar um vídeo criticando as duas referidas manifestações e defendendo a censura delas. Não por acaso, esse notório antipetista é virtual candidato à sucessão presidencial de 2018, agenda eleitoral que várias forças progressistas têm colocado em dúvida sobre se realmente será cumprida. Segundo a última pesquisa do Datafolha sobre para a corrida eleitoral que se avizinha, Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que também corre em raia da direita raivosa, aparece em segunda posição com 16% das preferências, 20 pontos atrás do arquitemido líder Lula.



Mas o direitismo não para por aí. Com a falência do Estado, que no Rio de Janeiro é paroxística, a política de segurança pela via das tropas federais do Exército ocupou territórios para combater o tráfico de drogas, ainda que em parceria com as polícias locais e em contexto do grande evento Rock in Rio. A paz dos moradores da Rocinha fica associada à presença dos tanques de guerra. A retirada dos militares trás de volta a sensação de insegurança à comunidade dos pobres e excluídos e de seus vizinhos privilegiados da zona sul carioca, como um virtual saldo político do autoritarismo em emersão lenta, gradual e segura.



Entrementes, os generais Hamilton Mourão e seu superior e comandante do Exército, Eduardo Villa Bôas, já admitiram entrar em ação para, nas palavras deles, evitar mais caos, saneando o problema da corrupção no sistema político, expressão de outra falência, a da liderança no sistema representativo democrático realmente existente. O bonapartismo militar surge como outro ingrediente autoritário da crise, como um salvacionismo em busca de apelo popular para restaurar a ordem. Não se esqueça que, nas manifestações de 2016, houve cenas de identificação mútua entre a direita das ruas e as polícias militares que fizeram a segurança dos protestos, nem que há saudosismo da ditadura entre uma minoria da opinião pública e que o apoio à democracia tem caído em toda a América Latina.



Ademais, como já apontado nessa coluna (e. g. 20 dez. 2016), o ativismo do sistema jurídico-policial (Operação Lava Jato, MPF, Polícia Federal, STF) abriu seu caminho de ação no processo político conjuntural um tanto quanto motivado pela vontade de passar o país a limpo e inaugurar uma nova etapa da história nacional. Até recentemente, esse ativismo era a principal manifestação do bonapartismo decorrente da crise de legitimidade que desequilibrou a balança de força entre os Três Poderes em benefício do Judiciário. Sua mais recente manifestação foi a inédita decisão da primeira turma do STF de afastar Aécio Neves (PSDB-MG) do cargo e o submeter a recolhimento noturno, o que causou inúmeras reações contrárias no Congresso Nacional, principalmente no Senado, e renovou a tensão entre, por um lado, o Legislativo e o Executivo e, por outro, o Judiciário. O nada exemplar senador mineiro é uma importante liderança governista. Ainda que não tenha havido cassação do mandato de Aécio, a prerrogativa para afastamento de cargo representativo cabe constitucionalmente ao Congresso, de modo que a tese do bonapartismo judiciário é plausível por mais esse fato.



A economia continua muito mal das pernas. O colapso do Estado brasileiro e a adesão à disciplina de mercado servem à penetração do capital internacional, os chamados “investidores”, por via indireta e direta e por políticas macroeconômicas e microeconômicas, como o teto de gastos pró-rentismo na política fiscal, a reforma trabalhista, o reforço à dependência nacional pelo estímulo ao investimento externo direito, a desnacionalização do pré-sal e, a depender apenas da vontade dos ultraliberais, da infraestrutura, facilitada pelos acordos de leniência prejudiciais às grandes empreiteiras, e não ao patrimônio de seus proprietários enquanto pessoas físicas e assim por diante.



Feitas as contas, temos uma crise econômica, política e institucional. Governabilidade, mas não legitimidade. Um presidente muito fraco perante a nação, mas servil ao poder econômico. Se, por um lado, ele se esforça para atender à demanda do mercado por previsibilidade, tem também havido muita incerteza na esfera política e institucional, que nutre a expansão do autoritarismo social e político, inclusive por sinais de contágio militar do ímpeto bonapartista até então presente no Judiciário. A democracia, golpeada e submetida às rédeas oligárquicas das elites políticas e do grande capital com a deposição de Dilma, prossegue com a saúde fragilizada.



* Marcus Ianoni é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador do INCT-PPED, realizou estágio de pós-doutorado na Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia



Jornal do Brasil

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