quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O juízo de Vargas


Em termos internacionais, sociedades mais desiguais e violentas são o verdadeiro legado do atual ciclo de reformas trabalhistas. Trata-se de uma combinação socialmente explosiva que corrobora, finalmente, o juízo não muito lisonjeiro de Getúlio Vargas a respeito da burguesia brasileira.


Getúlio Vargas, fotografado por Jean Manzon na década de 1940.

Por Ruy Braga.

História conhecida, em 1935, após escutar em uma reunião organizada por Assis Chateaubriand reclamações de empresários de diferentes setores econômicos a propósito da fiscalização das leis trabalhistas que seriam unificadas em 1943, Getúlio Vargas, já de saída no carro, teria feito o seguinte comentário para seu ajudante: “Burgueses burros! Estou tentando salvá-los e eles não entenderam”.



Oito décadas depois, as alterações em mais de 100 artigos da CLT aprovadas a toque de caixa pelo Congresso no dia 11 de julho e que passaram a vigorar a partir do dia 11 de novembro significam, em termos práticos, o desmanche do polo protetivo trabalhista brasileiro tal como este foi desenhado entre as décadas de 1930 e 1980. Não resta dúvida de que se trata da vingança dos herdeiros daqueles empresários que participaram da reunião com Vargas na residência de Guilherme Guinle.



Em termos globais, a essência das mudanças diz respeito à afirmação do negociado sobre o legislado, à flexibilização da jornada de trabalho, à introdução de novas modalidades de contratação – como o trabalho intermitente, por exemplo –, e a ameaça à garantia de gratuidade do processo trabalhista. Alterando a estrutura do mercado de trabalho e dificultando o recurso à justiça do trabalho, os defensores da lei no. 13.467/17 alegaram que um aumento da oferta de empregos seria acompanhado por uma diminuição do número de processos que tramitam na justiça.



Assim, os trabalhadores ganhariam com o retorno dos empregos e os empresários seriam beneficiados pelo aumento da segurança jurídica, supostamente proporcionado pela atual reforma. Aparentemente, trata-se do melhor dos mundos possíveis. No entanto, em termos reais, o que esperar do desmanche do polo protetivo do trabalho no país?



Em primeiro lugar, é muito importante destacar que o número de processos trabalhistas no país é consequência, na imensa maioria dos casos, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, do não pagamento de verbas rescisórias devidas por parte das empresas. Prática empresarial rotineira, com o fim do contrato de trabalho, muitas vezes o trabalhador simplesmente não recebe o que estava previsto no contrato, seus direitos, etc., motivando a ação na justiça do trabalho. Além disso, tendo em vista o débil sistema de fiscalização existente no país, os empresários usualmente desrespeitam horários e normas de segurança, acarretando acidentes e, em consequência, aumentando o número de ações legais.



No entanto, como a atual reforma fere garantias e direitos assegurados pela Constituição, como é o caso, notoriamente, do conjunto de artigos que vedam em termos práticos o acesso do trabalhador à justiça, esvaziando o instituto da justiça gratuita, a insegurança jurídica deverá, ao invés de mitigar, aprofundar-se nos próximos anos. Ou seja, um longo período marcado pela insegurança jurídica devido ao amadurecimento das interpretações da lei nos aguarda.



Em segundo lugar, as modificações introduzidas pela lei no. 13.467/17, em especial no tocante à flexibilização da jornada de trabalho, à universalização da terceirização e à banalização do trabalho intermitente apontam para uma maior concentração de renda com a compressão dos salários e aumento das desigualdades sociais. Ou seja, considerando a demanda agregada, o efeito deverá ser a compressão do consumo das famílias trabalhadoras, desestimulando o investimento privado. Trata-se de uma consequência deletéria para todos aqueles que dependem fundamentalmente do consumo popular, aí incluído todo o enorme setor informal da economia.



Especialistas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que estudaram o impacto recente de reformas trabalhistas em vários países têm observado não uma queda do desemprego, mas um aumento do subemprego, com implicações negativas sobre o nível dos rendimentos do trabalho. Invariavelmente, estas reformas têm sido acompanhadas por um aumento da pobreza e das desigualdades sociais. Em alguns países, como em Portugal, por exemplo, pontos essenciais da reforma trabalhista de 2011 foram revisados, ocasionando melhoras significativas nos rendimentos do trabalho, fortalecendo a arrecadação tributária e ajudando a acelerar o crescimento econômico do país.



Finalmente, vale destacar que os ataques ao polo protetivo trabalhista têm promovido, em muitos países, uma ampliação dos níveis de violência social. Padrões rebaixados de salvaguardas trabalhistas fizeram com que a diferença entre o mercado formal e o mercado informal de trabalho colapsasse na África do Sul, por exemplo, afastando os trabalhadores dos sindicatos e promovendo sucessivas ondas de violência nos locais de trabalho que se ampliaram para as comunidades pobres. Em termos internacionais, sociedades mais desiguais e violentas são o verdadeiro legado do atual ciclo de reformas trabalhistas.



Sem dúvidas, a lei no. 13.467/17 prepara um futuro sul-africano para os trabalhadores brasileiros. Subitamente, o país pode ser empurrado para uma experiência social de banalização de baixíssimos salários, generalização de subempregos e de longas jornadas não pagas, multiplicação do adoecimento e dos acidentes de trabalho, aumento da insegurança jurídica e aprofundamento da crise de representação sindical. Trata-se de uma combinação socialmente explosiva que corrobora, finalmente, o juízo não muito lisonjeiro de Getúlio Vargas a respeito da burguesia brasileira.



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A Boitempo acaba de lançar o novo livro de Ruy Braga! A rebeldia do precariado propõe compreender as resistências populares às políticas de espoliação social que acompanham a difusão do neoliberalismo e da precarização do trabalho na semiperiferia do sistema, a partir da comparação entre três países – Portugal, África do Sul e Brasil.



Trata-se da primeira obra na história da sociologia brasileira a comparar três países em três continentes diferentes apoiando-se tanto no marxismo quanto em etnografias da condição proletária. Em termos internacionais, trata-se de um livro pioneiro que se propõe a interpretar a crise da globalização neoliberal iniciada em 2008 a partir da prática política e das formas de resistência do precariado urbano.





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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores dos livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, Carta Maior, 2013) e Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil (Boitempo, 2016). A Boitempo prepara para 2017 o lançamento de mais novo livro A rebeldia do precariado. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.


Boitempo

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