segunda-feira, 21 de maio de 2018

Frente de esquerda ou frente democrática?

Milton Lahuerta

Milton Lahuerta, coordenador do Laboratório de Política e Governo (LabPol) da Unesp, responde a duas perguntas sobre o sentido e a oportunidade de se construir uma frente de esquerda no Brasil.

É possível constituir uma frente de esquerda no Brasil de hoje?

Em princípio, é possível e até mesmo muito necessário, em virtude do avanço do conservadorismo, da intolerância e da insanidade política que acometeram boa parte das sociedades contemporâneas. No que se refere ao Brasil, talvez, em nenhum outro momento da história, tenha-se assistido a um processo tão radical e destrutivo de polarização ideológica. A questão é qualificar o que se entende por frente de esquerda e que atores políticos e setores sociais poderiam estar representados nessa proposição.



Até porque, ainda que haja uma grande polarização e muita intolerância nas redes sociais, num plano mais substantivo nota-se que as clivagens não são tão claras e estão permeadas por muita incompreensão e muito preconceito, o que dificulta o enfrentamento das profundas transformações dos últimos 40 anos. Nesse sentido, o grande problema é discutir em torno de que bandeiras se pretende estruturar uma frente de esquerda.



Hoje, diante da vitória acachapante do capitalismo, provocada pela mudança de padrão produtivo e tecnológico, o que se vê no âmbito mundial é que a esquerda passou a ter pautas essencialmente defensivas. Ou seja, mais do que qualquer perspectiva afirmativa e radicalmente mudancista (ou revolucionária), atualmente, apresentar-se como de esquerda implica muitas vezes defender posições e direitos que seriam mais adequadamente caracterizados como pertencendo ao campo do liberalismo político ou da social-democracia do que ao da esquerda revolucionária clássica.



Então, cabe perguntar do que se está falando quando se propõe uma frente de esquerda. Quem cabe nessa definição? As respostas a essas perguntas nunca foram fáceis — basta lembrar as tragédias que marcaram o século XX, causadas pela reiteração da lógica de “classe contra classe” (atualizada e “abrasileirada” pelo contemporâneo “nós contra eles”), e que impossibilitaram um diálogo mais construtivo entre as posições comunistas, social-democratas e liberais. Definitivamente, o século XX nos ensinou que essa nunca foi uma questão simples e que, toda vez que foi encaminhada de modo sectário, abrindo-se mão da defesa da democracia em nome de um maximalismo destituído de realismo, o resultado foi catastrófico não só para os de baixo, mas para o conjunto da sociedade.



Pensando a sociedade brasileira, que hoje se encontra dilacerada por um grau absurdo de intolerância e de polarização, quais as pautas que podem unir, ou desunir, os partidos de esquerda no país?



Pelas razões que elenquei acima, hoje, o grande desafio para a sociedade brasileira talvez seja a manutenção do Estado de Direito e a defesa da Constituição de 1988, pois estamos diante de um processo de retirada de direitos conquistados na luta contra a ditadura militar, que comporta uma dimensão complexa de desconstitucionalização promovida por um decisionismo jurídico que pretende regenerar os vícios políticos do país acabando com a própria política. Luiz Werneck Vianna chama esses juízes e promotores, que se atribuem um papel de moralistas reformadores e de justiceiros, de “tenentes de toga”, fazendo alusão ao movimento militar da década de 1920, mas para dizer que os tenentes, diferentemente dos atuais juízes e promotores, portavam um projeto de construção nacional que ia bem além da promoção de seus interesses corporativos.



Seja como for, o fato é que a sociedade vem se nutrindo de uma lógica antipolítica que favorece o processo de judicialização e dificulta a constituição de atores coletivos capazes de projetar um horizonte mínimo de reconstrução da vida civil. O que nos faz perguntar: o que se está pensando quando se propugna uma “frente de esquerda”? Quem caberia nela? Qual seria o seu escopo? Seria reunir com o PT aqueles que se colocam ideologicamente à sua esquerda (como o PSOL, PCdoB, MTST, MST, Levante da Juventude, etc.)? Ou se buscaria trazer setores mais alinhados ao que se chama de centro-esquerda, como o PSB, o PDT, a Rede, etc.? Por essa razão, penso que o desafio passa pela construção de um programa mínimo, para além das eleições, que tenha a perspectiva de defender o Estado de Direito e a Constituição de 1988 (ou pelo menos o seu espírito cidadão). E que seja capaz de articular uma agenda que trate simultaneamente do grave problema da responsabilidade fiscal e do imperativo de responder a uma questão social cada vez mais explosiva e fora de controle.



Obviamente, há que se pensar também em termos eleitorais, mas sem reduzir o horizonte exclusivamente a essa dimensão. Se o objetivo não for apenas o de marcar posição e/ou de ser competitivo nas eleições, trata-se de construir uma frente ampla que apresente um programa à altura dos desafios do tempo presente, capaz de oferecer um horizonte de governabilidade e também de reencantar a sociedade brasileira, no sentido de reduzir o seu afastamento das instituições democráticas. Para tanto, será necessário colocar em movimento uma operação política complexa que não se restrinja a unir a esquerda e mesmo o centro-esquerda, mas se empenhe, inclusive, no estabelecimento de novas formas de interlocução com setores do liberalismo político.



A frente que o país precisa hoje deve ter a finalidade de compor um generoso arco de forças capaz de conter a dinâmica de desconstitucionalização que vem abalando o Estado de Direito e rebaixando terrivelmente os horizontes do futuro e a qualidade da democracia no Brasil.


Gramsci Brasil


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